quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Especial // Ano Internacional da Química --Das moléculas aos organismos

Quando se fala em biodiversidade, uma das maiores riquezas do Brasil, o que vem à mente costuma ser plantas e animais, numa enorme variação de formas, cores, tamanhos e tipos. Quase ninguém se lembra das moléculas que, com uma diversidade igualmente espantosa, permeiam todo esse patrimônio natural. Entre os raros conscientes da importância da química estão os palestrantes do quarto encontro do ciclo de conferências organizado pela FAPESP e pela Sociedade Brasileira de Química, que celebra o Ano Internacional da Química. Vanderlan Bolzani, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara, Carlos Alfredo Joly e Anita Marsaioli, ambos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), encantaram no dia 19 de julho uma plateia composta em grande parte, apesar de ser período de férias, de alunos do Instituto Técnico de Barueri. A presença desses jovens cheios de interesse foi preciosa para os conferencistas, que não perderam a chance de apresentar a diversidade oculta e de indicar campos de trabalho e de pesquisa promissores.

“Um dos objetivos do Ano Internacional é promover a reflexão sobre a importância da química para a sustentabilidade”, comentou Dulce Siqueira Silva, da Unesp de Araraquara, coordenadora do dia. Um bom ponto de partida, retomado pelos três palestrantes. O botânico Carlos Alfredo Joly falou justamente de sustentabilidade. Ele é coordenador do Programa Biota, da FAPESP, que, nos primeiros 10 anos de atividades em inventários da biodiversidade dos ecossistemas paulistas, mostrou como o conhecimento científico pode ajudar na sua preservação (ver também Trilha Ecológica). E vem de fato contribuindo. Os mapas produzidos pelo Biota para indicar áreas para conservação e restauração no cerrado e na mata atlântica no estado de São Paulo (ver Pesquisa FAPESP nº 141), além das diretrizes publicadas em livro, acabaram ajudando a Secretaria do Meio Ambiente a aprimorar a legislação. Segundo o professor da Unicamp, até agora 19 instrumentos legais usam informações do Biota. “Isso raramente acontece”, disse Joly, “e o conhecimento que reunimos também foi usado para zonear áreas para o plantio de cana-de-açúcar no estado”. Mais do que isso, o exemplo deu origem a iniciativas semelhantes em outros estados e na escala federal, além de gerar parcerias na América Latina e na África. O Programa Biota tem continuidade garantida até 2020.

Mesmo dando origem a produtos como os mapas, as listagens de espécies estão longe de ser o fim da história. Alguns projetos do Biota, como o coordenado pelo próprio Joly, buscam desvendar os ambientes terrestres, ainda muito pouco conhecidos. “Precisamos descrever os ciclos do carbono, da água, de nutrientes, entender como as mudanças climáticas afetam os ecossistemas e os serviços que eles oferecem”, alertou o botânico. Ele lembrou que o domínio da mata atlântica está ocupado pelas maiores capitais brasileiras, como Rio de Janeiro e São Paulo, e abriga cerca de 125 milhões de pessoas. “Só sobrou cerca de 10% dessa floresta, e é daí que vem a água para toda essa população.” Um exemplo dos problemas sérios causados pela redução da floresta é a situação do fornecimento de água para o estado do Rio de Janeiro, feito principalmente pela represa do Paraibuna, a 320 quilômetros da capital fluminense. “Já não tem água mais próxima”, afirmou.

Para entender o funcionamento da mata atlântica, o grupo coordenado por Joly está estudando áreas num gradiente de altitude que vai desde o nível do mar, em Ubatuba, até mil metros de altitude, em São Luiz do Paraitinga. “Marcamos 21 mil árvores de 625 espécies”, relatou. Os resultados mostram que a mata atlântica é muito diferente da floresta amazônica na forma de armazenar carbono. Principalmente nas áreas mais altas, a floresta úmida típica da Região Sudeste armazena mais carbono do solo para baixo do que acima dele. Nessas zonas de montanha, muito da matéria orgânica que cai – como galhos e folhas – se decompõe lentamente, por causa do frio. “A gente anda num chão fofo, que na verdade não é solo, é turfa”, contou. Essas regiões são, por isso, muito suscetíveis aos processos de mudanças climáticas. Com o aquecimento global, essa matéria orgânica deve se decompor mais depressa e muito do carbono será liberado, agravando o efeito estufa.

Aproximando-se da química, Joly disse que a riqueza nacional ainda é pouco aproveitada, inclusive por causa da legislação, que torna, em suas palavras, um martírio trabalhar nessa área. “Precisamos utilizar a diversidade química da nossa biodiversidade, inclusive como mecanismo de sustentabilidade”, afirmou. Um dos desafios que ele assumiu, ao aceitar o cargo de diretor do Departamento de Políticas e Programas Temáticos (DPPT) no Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), é flexibilizar as regras para pesquisa e desenvolvimento de novos produtos oriundos da biodiversidade. Uma iniciativa imprescindível para impulsionar a Rede Biota de Bioprospecção e Bioensaios, o BIOprospecTA, um subprograma do Biota dedicado a encontrar na natureza moléculas que possam ser úteis ao ser humano.
Diversidade molecular - A vertente química do Biota foi inaugurada por Vanderlan Bolzani em 2003. “Foi o primeiro projeto de química de produtos naturais dentro de um programa de pesquisa em biodiversidade”, contou ela. Com seu orientador Otto Gottlieb, pioneiro da química de produtos naturais no Brasil, ela aprendeu que a diversidade das moléculas tem alto valor agregado – um valor científico que pode se tornar econômico. “Uma planta produz centenas de substâncias, e apenas uma delas pode ser mais importante que uma galáxia”, afirmou, parafraseando o mestre.
Muitas das moléculas hoje usadas na indústria farmacêutica são sintéticas, como mostraram as conferências de junho (ver Pesquisa FAPESP nº 185), mas os químicos se inspiram na biodiversidade para produzir essas substâncias complexas. Por isso, para Vanderlan, é importante que esse laboratório natural seja mantido. Um exemplo é o caramujo Conus magus, que vive no mar Vermelho e no oceano Índico, e de cujo veneno foi obtida uma substância analgésica mil vezes mais potente que a morfina, aprovada para uso clínico nos Estados Unidos em 2004. “Duzentos anos depois da descoberta da morfina, a bioprospecção em ambientes marinhos deu origem a um medicamento ainda mais eficaz para o tratamento da dor crônica”, ressaltou a química da Unesp.

No Brasil, ela lamenta tantas oportunidades perdidas. “Temos um grande número de espécies de mirtáceas na nossa biodiversidade”, contou, referindo-se à família de plantas que em outros lugares do mundo já serviram como base para medicamentos. É o caso da bucha-de-garrafa (Callistemon citrinus), em que foi encontrada a substância nitisinona, que, com uma pequena modificação, deu origem ao tratamento para uma doença rara. “Se no Brasil tivéssemos o ambiente e a estrutura corretos, aproveitaríamos muito melhor as oportunidades que as plantas nos oferecem”, afirmou. Afinal, cerca de 55 mil espécies vegetais povoam os ecossistemas do país.

Uma história de sucesso envolve a erva-baleeira (Cordia verbenacea), muito comum em toda a costa brasileira, que deu origem ao creme Acheflan, indicado para tendinites e dores musculares. Segundo Vanderlan, foi o primeiro anti-inflamatório completamente desenvolvido no Brasil, numa parceria entre universidades (Universidade Federal de Santa Catarina e Unicamp) e indústria (Laboratório Farmacêutico Aché). O medicamento é feito de substâncias que Vanderlan extraía em seus tempos de estudante, mas não tinha uso para elas. Com o avanço do conhecimento, o que antes era descartado hoje se tornou líder de vendas.

Muita pesquisa é necessária para atingir esse conhecimento: as substâncias não vêm com bulas destacando o uso indicado. Ao contrário, muitas vezes elas são tóxicas no estado natural. “A natureza produz essas moléculas para sua própria regulação; ela não produz absolutamente nada pensando na nossa saúde”, destacou. Os pesquisadores é que precisam estudar para adaptá-las.
Natureza química – A diversidade do uso das substâncias pelos animais e plantas que as fabricam é o tema da química Anita Marsaioli, amarrando ainda mais a química à biodiversidade. “Não sei classificar plantas nem animais, sei classificar substâncias químicas”, contou. Por isso faz seus projetos em parceria com biólogos.

É o caso de estudos com opiliões, que conta com ajuda de Glauco Machado, da Universidade de São Paulo (ver Pesquisa FAPESP nº 144). Ela contou que esses aracnídeos exalam “um mau cheiro horroroso”, e é essa mistura de substâncias de defesa química que seu grupo investigou no contexto da evolução e diversificação do grupo. A equipe mapeou na árvore filogenética – a árvore genealógica das espécies – as substâncias encontradas na secreção. A análise mostra que algumas surgiram em certo ponto da árvore, pista para investigar se algo mais mudou na biologia daqueles opiliões. A descoberta é curiosa: as espécies em que surgiram novos compostos também lançam o líquido de defesa, em vez de simplesmente ter gotículas brotando do corpo.

Descobrir quais são as substâncias, como são formadas e seu mecanismo de ação não é fácil. Nesse caso, exigiu que os químicos da Unicamp montassem o que Anita chama de hotel de opiliões e sintetizasse substâncias em laboratório. Com isso, mostraram como a defesa jorrada persiste no ambiente e aos poucos, ao longo de cinco dias, libera o cheiro espanta-predador. Agora o grupo está prestes a descrever como os opiliões produzem essas substâncias sem acesso a truques de laboratório, como ampolas, onde a reação acontece sem oxigênio e a 180 graus Celsius.

O universo encantador revelado por Anita é uma verdadeira homenagem à variação biológica e química da natureza brasileira. Envolve sistemas diversos como a comunicação química entre plantas da família das malpighiáceas e abelhas solitárias, e a diversidade de venenos numa única espécie de formigas lava-pés (Solenopsis saevissima) até mesmo dentro de uma mesma colônia (operárias e rainhas têm compostos distintos que podem ter funções completamente diferentes).

“A biodiversidade está nos organismos, nas enzimas, nas moléculas”, concluiu Anita, que insiste que a pesquisa no país precisa investir naquilo que ele tem de melhor. Diante de oportunidades no exterior no início da carreira, optou por desbravar a biodiversidade brasileira. Não se arrepende.

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