sábado, 7 de julho de 2012

Fábrica vai produzir 16 milhões de mosquitos por mês em Juazeiro

 


O mosquito da dengue, geneticamente modificado, será produzido em larga escala numa fábrica que será inaugurada hoje, em Juazeiro, para tentar reduzir a espécie. Quando estiver operando, a unidade terá capacidade de fabricar quatro milhões de mosquitos machos por semana.
Eles serão lançados em Jacobina, cidade de 79 mil habitantes, também localizada na Bahia. Uma vez livres, os machos modificados se comportam como os que já existem na natureza: procuram uma fêmea para perpetuar a espécie. A diferença é que o mosquito produzido na fábrica baiana carrega um gene responsável pela morte das larvas, que nunca chegarão à fase adulta.
Em Juazeiro, há uma fábrica menor, capaz de produzir toda semana 12 milhões de machos de uma espécie de mosca que causa prejuízos à fruticultura no Vale do São Francisco. A fábrica é operada pela Moscamed, uma organização social ligada ao Ministério da Agricultura e ao governo da Bahia. Ela também já tem uma produção menor de mosquitos da dengue — 500 mil por semana — que vêm sendo liberados desde 2011 em dois bairros de Juazeiro. Os resultados foram promissores, com uma redução de 90% da população do mosquito.
O pedido para soltar os mosquitos em Jacobina já foi encaminhado à Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) e, segundo o diretor da Moscamed, professor de genética da Universidade de São Paulo, Aldo Malavasi, deverá ser aprovado nos próximos meses, quando a fábrica ainda não estará funcionando plenamente. Mas tanto Malavasi como Margareth Capurro, pesquisadora da USP que coordena o projeto, destacam que no momento não é possível falar em erradicação do mosquito.
— A erradicação é extremamente difícil e trabalhosa. Essa tecnologia é uma ferramenta a mais no combate à dengue — disse Malavasi.
Também é cedo para falar no uso dessa técnica em outros lugares. Segundo o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, primeiro é preciso avaliar o resultado do teste em Jacobina:
— É importante acompanhar por um período mais prolongado, numa cidade, considerando a característica variável dos bairros.
A fábrica tem 720 metros quadrados de área e consumiu R$ 1,7 milhão. O Projeto Aedes Transgênico (PAT) é desenvolvido em parceria com a USP e a empresa britânica Oxitec, com ajuda do governo da Bahia.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

As rochas vivas de Abrolhos

As águas mornas que banham a região de Abrolhos, no sul da Bahia, guardam o maior banco de algas calcárias do mundo. Em uma área de quase 21 mil quilômetros quadrados, semelhante à do estado de Alagoas, o fundo do oceano é rochoso. Está coberto por esferas duras de tamanhos variados – as maiores têm o diâmetro de uma bola de futebol de salão – e cores que vão do castanho ao rosa. Essas esferas são nódulos de calcário depositado por algas vermelhas de milímetros de comprimento que vivem em sua superfície. Também conhecidas como rodolitos, essas estruturas criam um ambiente com reentrâncias e saliências que servem de abrigo para peixes, crustáceos e invertebrados. Mapeado agora por pesquisadores brasileiros, o banco de rodolitos de Abrolhos se estende do norte do Espírito Santo ao sul da Bahia e produz 25 milhões de toneladas de calcário por ano ou 5% da produção global desse mineral, usado na agricultura, na indústria de cosméticos e até na medicina.
“Os rodolitos são chamados vulgarmente de rochas vivas por causa das algas que formam seu exterior”, conta Gilberto Menezes Amado Filho, biólogo do Instituto de Pesquisa Jardim Botânico do Rio de Janeiro, um dos autores do mapeamento publicado em abril na PLoS ONE. Junto com o calcário produzido por corais e moluscos com concha, eles contribuem para a formação do fundo do oceano. “Parte da plataforma continental brasileira é resultado de crescimento calcário ocorrido nos últimos 18 mil anos”, explica.
Com a aparência de seixos, que ganham ao rolarem arrastados por correntes marinhas, os rodolitos se formam pela aglomeração de pequenas algas que crescem umas sobre as outras ou incrustadas em fragmentos de concha ou grãos de areia. Eles aumentam de tamanho à medida que seu esqueleto, rico em carbonato de cálcio (CaCO3), mineraliza. Os rodolitos de Abrolhos têm em média 5,9 centímetros de diâmetro – os maiores chegam a 14 centímetros – e crescem pouco mais de um milímetro por ano. Foram encontrados a profundidades que variavam de 20 metros a 110 metros, com cerca de metade da superfície coberta por algas de uma ou mais espécies – em Abrolhos foram identificadas seis. Nesse trecho da costa, os rodolitos ocupam 70% do fundo marinho (o resto é sedimento) e, segundo as datações, os mais antigos têm por volta de 8 mil anos.
Sabia-se dos rodolitos do litoral brasileiro desde os anos 1970, mas não se imaginava que ocupassem tal extensão. Em projetos coordenados pelo Instituto Ocea-nográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP), pela Conservação Internacional do Brasil e pela Universidade Federal do Espírito Santo, pesquisadores mapeavam o fundo do mar naquela região entre 2007 e 2011 quando perceberam estar diante de algo importante. “Na medida em que nos demos conta de estar diante de um grande banco de rodolitos, passamos a direcionar esforços para compreender a diversidade associada a eles e o papel funcional desse ecossistema”, conta Amado Filho.
Após o mapeamento por sonar, os pesquisadores usaram dois robôs submarinos para avaliar a distribuição, extensão, composição e estrutura do banco. “Usamos os robôs para analisar as áreas mais profundas e detalhar os pontos relevantes”, conta Paulo Sumida, do IO-USP. Numa terceira etapa foram realizados mergulhos para a coleta de exemplares e a realização de experimentos para estimar a produção de carbonato de cálcio.
Há bancos de rodolitos em todos os oceanos. Os mais extensos estão, além do Brasil, na costa do México e da Austrália. Eles são importantes para a vida de outros organismos por servir de abrigo e proporcionar um ambiente mais rico biologicamente do que um fundo de areia. “Eles funcionam como corredores entre recifes de corais, facilitando a migração de lagostas e peixes”, diz Amado Filho.
Do ponto de vista ambiental, os rodolitos têm ainda outra função importante: ajudam a retirar carbono da atmosfera, influenciando a regulação do clima do planeta. Eles absorvem o gás carbônico (CO2) diluído na água e o transformam em calcário, mas estão ameaçados pelas atividades humanas. A maior ameaça é o aumento da acidez do mar, consequência da elevação dos níveis de CO2 na atmosfera – em boa parte por queima de combustíveis fósseis. “Um terço do carbono emitido por atividades humanas e adicionado à atmosfera é absorvido pelos oceanos”, diz Amado Filho. “Estima-se que até o fim do século, o pH da água do mar diminua 0,4 unidade, tornando-a mais ácida. Estruturas carbonáticas de recifes, atóis e bancos de rodolitos serão dissolvidas.” Essa mudança também deve reduzir a calcificação dos organismos marinhos em 40%.
“Em geral os recifes de corais concentram as atenções, mas agora se sabe que o Brasil tem essas outras fábricas de carbonato de cálcio de vital importância para a biodiversidade marinha”, comenta o biólogo Jason Hall-Spencer, da Universidade de Plymouth, Inglaterra. “Essas algas coralinas estão entre os organismos calcificantes que parecem mais sensíveis à acidificação dos oceanos.”
Outra ameaça aos rodolitos de Abrolhos é a exploração econômica do calcário. Como são fáceis de coletar, há empresas que os usam como fonte do mineral. Além de calcário, eles contêm quantidades variáveis de outros elementos químicos (ferro, manganês, bromo, níquel, cobre, zinco e molibdênio) usados na agricultura, nas indústrias dietética e de cosméticos, na nutrição animal e no tratamento da água.
“Os rodolitos estão em águas rasas, com 20 a 110 metros de profundidade, e têm um formato que facilita a extração em grande escala”, diz Rodrigo Leão de Moura, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que participou do levantamento. “Além disso, são sensíveis à qualidade da água do mar, que vem sendo afetada pelo mau estado de conservação das bacias hidrográficas”, acrescenta. Embora tenham uma parte viva, os rodolitos não são recursos renováveis. “São necessários milhares de anos para os rodolitos se formarem e criarem um banco expressivo como o recém-descoberto”, explica Moura. Ante essas ameaças, os pesquisadores afirmam que é preciso aumentar a proteção com a criação de áreas protegidas, a recuperação das margens dos rios e o controle de efluentes. “Dos 46 mil quilômetros quadrados do banco de Abrolhos”, alerta Sumida, “só 2% estão protegidos por unidades de conservação”.
Artigo científico
AMADO-FILHO, G.M.; MOURA, L. R. et al. Rhodolith beds are major CaCO3 bio-factories in the tropical south west Atlantic. PLoS ONE. v. 7(4). abr. 2012.

Paladar profundo

O estômago e o intestino são dotados de células nervosas capazes de detectar sabores como a língua. Em sua coluna de dezembro, Roberto Lent mostra como descobertas recentes da neurociência têm ajudado a desvendar seu funcionamento.
Por: Roberto Lent
Publicado em 25/12/2009 | Atualizado em 25/12/2009
Paladar profundo
'O comedor de feijões', tela pintada no fim do século 16 pelo italiano Annibale Carracci (1560–1609).
Paladar no intestino? Ninguém merece! Esta talvez seja sua reação ao saber que a mucosa intestinal apresenta sofisticados mecanismos de detecção de sabores e até mesmo de cheiros.
Tudo começou há várias décadas, quando se descobriu que as paredes do estômago e do intestino hospedam uma rede de neurônios com uma complexidade de causar inveja a qualquer medula espinhal. Seriam dezenas de milhões de neurônios, segundo as estimativas, formando um conjunto de circuitos com células excitatórias e inibitórias, substâncias químicas neurotransmissoras, hormônios, células gliais de apoio, sinapses entre os prolongamentos dos neurônios e muito mais.
Essa complexa rede impressionou os neurocientistas a tal ponto que ela passou a ser chamada sistema nervoso entérico.

Um cérebro no intestino

O sistema nervoso entérico, com toda essa organização complexa, não parece realizar funções de tão alta complexidade: ele se responsabiliza ’apenas’ por promover os movimentos de mistura e propulsão do bolo alimentar e a secreção de hormônios, enzimas e outras substâncias que participam da digestão.
’Apenas’ entre aspas, porque esses movimentos têm uma velocidade e uma direção que deve ser bem regulada: para frente em um vaivém vagaroso, de modo a facilitar a digestão, ou para trás, explosivamente, quando é preciso eliminar por meio do reflexo do vômito alguma coisa que não ’caiu bem’. De qualquer modo, tarefas simples, se comparadas com as do sistema nervoso central.
Há que se detectar a natureza das substâncias químicas que entram misturadas aos alimentos ingeridos
No entanto, se as tarefas ’de saída’ são simples, o mesmo não se pode dizer das informações ’de entrada’, ou seja, aquelas que chegam ao intestino. Há que se detectar a natureza de cada uma das inumeráveis substâncias químicas que entram misturadas ao alimento que ingerimos: proteínas, carboidratos, gorduras de vários tamanhos e tipos, moléculas pequenas como as vitaminas, gases produzidos pela digestão, ácidos, bases, diminutos íons.
Há também que se sentir a temperatura do bolo alimentar, ’perceber‘ o grau de estiramento do estômago e do intestino quando recebem o alimento, detectar se o indivíduo (e com ele o seu trato gastroentérico) está deitado, sentado ou em pé. É também preciso detectar substâncias irritantes ou tóxicas que possam ter sido ingeridas e causem dor, ardência e outras sensações desagradáveis. E relacionar tudo isso com as concentrações sanguíneas de compostos como a glicose, os ácidos graxos, as vitaminas, os íons que determinam o pH, e assim por diante.

Receptores do paladar na mucosa gastroentérica

A complexidade sensorial da parede gastrointestinal levou os pesquisadores a prever que deveriam existir, nesse local, células receptoras especializadas na detecção química de todas essas substâncias. Essas células deveriam estar posicionadas na superfície interna do estômago e do intestino, para ter fácil contato com o bolo alimentar. E dispor de uma maquinaria molecular capaz de prover os mecanismos de detecção dos estímulos.
 
Várias células com essas características foram identificadas, mas as mais estudadas foram as chamadas células enteroendócrinas. A surpresa foi constatar que essas células se comportam como as células gustatórias do paladar, na língua.
Nesse trabalho destaca-se o grupo de neurofisiologistas liderados por Paul Bertrand, na Universidade de New South Wales, em Sydney, Austrália. Esse grupo empregou técnicas avançadas de estudo com pequenos segmentos de intestino de diferentes animais, inclusive seres humanos, e mesmo agrupamentos de poucas células enteroendócrinas investigadas por meio de micropipetas capazes de detectar quantidades muito pequenas de moléculas secretadas para o meio externo.
A primeira informação que se obteve é que essas células têm o physique du rôle, isto é, apresentam pequenos e numerosos ’pelos’ (microvilosidades) na face interna do intestino – bem situados para alojar quimiossensores para as substâncias relevantes –; e grânulos densos na parte mais próxima dos terminais nervosos – bem posicionados para armazenar transmissores químicos e, por meio deles, transmitir informações para os nervos que se comunicam com o sistema nervoso central.

Os mecanismos moleculares do ‘paladar intestinal’

Na busca dos mecanismos moleculares de sinalização química das células enteroendócrinas, o que mais surpreendeu foi encontrar quase todos os elementos das células gustatórias da língua. Constatou-se, por exemplo, a presença, nas microvilosidades, das mesmas moléculas receptoras do paladar adaptadas para detectar o sabor doce da glicose, ativando as mesmas vias bioquímicas intracelulares. O intestino, assim, diferencia a sobremesa do prato principal!
O intestino diferencia a sobremesa do prato principal!
Nos grânulos encontraram-se neurotransmissores excitatórios como a serotonina e inibitórios como o ácido gama-aminobutírico, neuropeptídeos como a neurotensina e a somatostatina, e hormônios como a orexina e a grelina. Um verdadeiro arsenal de comunicação neuroquímica.
Usando as micropipetas, o grupo de Bertrand demonstrou a liberação de serotonina produzida pela ação de nutrientes e sua ação nos terminais nervosos situados próximo às células enteroendócrinas, dentro do sistema nervoso entérico. E, finalmente, nos terminais encontrou-se abundante presença de receptores moleculares para a serotonina, como ocorre nas sinapses do sistema nervoso central.
Célula gustatória e célula enteroendócrina - comparação
A maquinaria molecular das células enteroendócrinas (à direita) é muito semelhante à das células receptoras da língua (à esquerda).
O circuito então se fechou: há receptores do paladar na parede intestinal e um verdadeiro cérebro capaz de processar informações e emitir reflexos digestórios.
Não pense, no entanto, que os receptores profundos do paladar permitem algum tipo de percepção consciente de sabores. Para nos deliciarmos com o paladar de uma boa feijoada, ainda é necessário utilizar o bom e velho recurso de colocá-la na boca em pequenas porções, e mastigar, mastigar, mastigar lentamente para só então engolir e deixar ao intestino a tarefa de lidar com a digestão. O prazer começa antes.


Roberto Lent
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Sugestões para leitura:

O. Mace e colaboradores (2007) Sweet taste receptors in rat small intestine stimulate glucose absorption through apical GLUT2. Journal of Physiology, vol. 582:379-382.

Z. Kokrashvili e colaboradores (2009) Release of endogenous opioids from duodenal enteroendocrine cells require TRPM5. Gastroenterology, vol. 137:598-606.

P.P. Bertrand (2009) The cornucopia of intestinal chemosensory transduction. Frontiers in Enteric Neuroscience, publicação eletrônica 1: 3. doi:10.3389/neuro.21.003.2009.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Velhos Neurônios, Novos Truques Células cerebrais podem nos ajudar a lembrar o passado assumindo novas funções enquanto envelhecem


Há décadas os pesquisadores sabem que nossa capacidade de lembrar experiências cotidianas depende de um fino cinturão de tecido cerebral chamado hipocampo. Acreditava-se que funções básicas da memória, como a produção de lembranças novas e a recuperação de antigas, eram executadas nesse cinturão por conjuntos diferentes de neurônios. Agora, descobertas sugerem que os mesmos neurônios na verdade executam essas duas funções tão diferentes mudando de papel conforme envelhecem.

A vasta maioria desses neurônios do hipocampo, chamados de células granulares, se desenvolve quando somos muito jovens e permanecem no lugar durante nossa vida. Mas cerca de 5% deles se desenvolvem na vida adulta através do nascimento de novos neurônios, processo conhecido como neurogênese. Células granulares jovens ajudam a formar novas lembranças mas, conforme envelhecem, mudam de função para ajudar a lembrar o passado. As células granulares mais novas preenchem a lacuna, assumindo o papel de ajudar a formar novas lembranças. Susumu Tonegawa, do MassachusettsInstitute of Technology, e seus colegas publicaram as descobertas em 30 de março no periódico Cell.


 

A equipe de Tonegawa testou o papel dessas células nascidas em adultos alterando geneticamente ratos nos quais as células velhas podiam ser desligadas seletivamente. Então eles puseram os animais em vários labirintos submetendo-os a testes de condicionamento de medo, o que demonstrou que células granulares jovens são essenciais para lembrança de eventos com base em pequenos sinais. Essa descoberta sugere que danos de memória comuns ao envelhecimento e ao transtorno de estresse pós-traumático podem estar conectados a um desequilíbrio entre células novas e velhas.

“Se você não tiver uma quantidade normal de células jovens pode ter problemas para distinguir dois eventos que seriam vistos como diferentes por pessoas saudáveis”, explica Tonegawa. Ao mesmo tempo, a presença de muitas células velhas poderia tornar mais fácil lembrar experiências traumáticas passadas com base em sinais atuais.

Pesquisas anteriores mostraram que tanto as experiências traumáticas quanto o envelhecimento natural podem levar a uma menor produção de novos neurônios no hipocampo. Mas a relação de causa-efeito entre problemas de neurogênese e transtornos de memória ainda deve ser estabelecida. Se uma conexão desse tipo for descoberta, abrirá a porta para uma nova classe de tratamentos visando o estímulo da neurogênese. E mudará a forma como pensamos o funcionamento da memória.

domingo, 1 de julho de 2012

Uma das apreensões de setores da Sociedade Nacional


Os perigos negligenciados na mudança do Código Ambiental

Um princípio da Biologia da Conservação (ciência que estuda como conservar e usar de forma sustentável os recursos naturais bióticos) é que, mesmo que sejam numerosos e extensos, parques e reservas públicos isolados não são suficientes para que a biodiversidade da Terra e o funcionamento de seus ecossistemas sejam garantidos de forma permanente.A participação de áreas particulares é imprescindível para assegurar essa situação e isso significa que, de uma maneira ou outra, temos, todos,responsabilidade no desafio de desenvolver o país de maneira ambientalmente saudável.

A rede de parques e reservas do Brasil dispõe de uma legislação própria, baseada na chamada Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC, Lei nº 9.9985 de 2000). Já a conservação em todas as áreas particulares obedece ao que conhecemos como Código Florestal (Lei nº 4.771), instrumento legal adotado em 1965.

O Código Florestal protege áreas ambientais frágeis e, ao mesmo tempo, estratégicas para a segurança de toda a sociedade, caso das margens de rios e reservatórios, encostas íngremes e nascentes. Essas áreas são denominadas de Áreas de Preservação Permanente (APP). Além disso, determina que uma porção da propriedade rural permaneça coberta pela vegetação nativa original, denominada de Reserva Legal (RL). Baseando-se em resultados científicos, o Código Florestal reconhece 14 funções ecológicas das APPs e RLs: preservação dos recursos hídricos, paisagem e biodiversidade, garantia do fluxo gênico de fauna e flora, proteção do solo, garantia do bem-estar das populações humanas e do uso sustentável dos recursos naturais, garantia da conservação e reabilitação dos processos ecológicos, promoção do abrigo e proteção da fauna e flora nativas, proteção sanitária, controle do fogo e da erosão, favorecimento da erradicação de espécies invasoras e proteção de plantios com espécies nativas.

Várias são as modificações propostas para o novo Código Florestal. As principais incluem , por exemplo:

1. Substituição do “leito maior” por “calha” e “leito regular”. Essa medida, aparentemente simples, na realidade equivale a alterar o critério de medida dos limites das áreas protegidas de APP de margem de rios. Atualmente, a Lei do Código Florestal prevê que os limites sejam medidos a partir do “leito maior sazonal” do rio, o que significa a meda das maiores cheias anuais. O novo texto troca “leito maior” por “leito regular” ou “calha do rio”, que equivale ao curso seguido pelo rio na maior parte do ano. Essa mudança reduz drasticamente  a área ribeirinha protegida por Áreas de Preservação Permanentes, sobretudo nos rios maiores, pois grande parte da área atualmente protegida de um ponto de vista legal ficará localizada dentro do próprio leito maior do rio. Com essa medida, grande parte das florestas ribeirinhas brasileiras perdem sua proteção legal, visto que a planície de inundação (área alagada todo ano durante as enchentes) passa a ser desconsiderada no cálculo da APP. Também para fins de recomposição, a nova proposta reduz a APP de margens de rios (com até 10 metros de largura) dos 30 metros atuais para faixas que dependem do tamanho da propriedade, podendo ser de apenas 5 metros, em alguns casos.

2. Nas várzeas, mangues (o que inclui os apicuns) e matas de encosta, topos de morros e áreas com altitudes acima de 1.800 m passa a ser permitidas atividades econômicas agrossilvopastoris. Ocorre que todos estes ambientes são reconhecidamente frágeis e apresentam dificuldade de recuperação a impactos, além de prestarem diversos serviços ambientais. Todas essas áreas são ecossistemas únicos, com faunas e floras exclusivas. São essas áreas que estão envolvidas nos alagamentos dentro das cidades durante as inundações ou deslizamentos de terra durante as chuvas de verão, provocando transtornos que vão desde perdas materiais a mortes.

3. A nova proposta permite que as Áreas de Preservação Permanente sejam incluídas para o cálculo do porcentual da Reserva Legal. Essa alteração no código anterior liberará as áreas de vegetação nativa presentes nas propriedades para desmatamento e fragmentação florestal, ambos nocivos em termos ambientais. Alterações nas Margens dos fragmentos é chamado efeito de borda.

Saiba que... Efeito de borda é uma alteração na estrutura, na composição e/ou na abundância relativa de espécies na parte marginal de um fragmento. Tal efeito seria mais intenso em fragmentos pequenos e isolados. Esta alteração da estrutura acarreta em uma mudança local, fazendo que plantas que não estejam preparadas para a condição de maior estress hídrico, característico das regiões de borda, acabem perecendo, acarretando em mudanças na base da cadeia alimentar e causando danos à fauna existente na região. Muitas vezes essa morte dentre os integrantes da flora na região de borda, acarreta na ampliação desta região, podendo atingir segundo alguns autores, até 500m.

Na comunidade científica é quase unânime a opinião de que uma das principais consequencias dse uma legislação será o aumento generalizado do desmatamento. A principal razão para justificar essa projeção é fácil de compreender : apenas a permissão é automática de desmatamento contida na nova lei para propriedades com até 4 módulos fiscais provocaria nos estados do norte do Brasil desmatamento de até 71 milhões de hectares de florestas nativas.

A perda dos ambientes naturais leva a perda dos serviços ecossistêmicos que incluem água limpa, madeira, polinizadores para plantações, ambientes de reprodução para peixes, ostras e plantas agrícolas. A redução das áreas de vegetação das várzeas (inundadas periodicamente na época das chuvas) leva ao assoreamento. A perda da vegetação natural afeta a recarga dos aquíferos que são grandes reservatórios subterrêneos de água. Perda de inúmeras de espécies de peixes, abelhas nativas que atuam como polinizadores e da biodiversidade. As áreas florestais atuam como centros do sequestro natural de gás carbônico em grandes quantidades e sua retenção na biomassa vegetal sob a forma de raízes, troncos, galhos e folhas. A redução das Áreas de Reserva Legal reduzem ambientes que desempenham papel fundamental como corredores de migração e pontos de passagem de milhares de sementes e animais, fornecendo o que os pesquisadores chamam de conectividade

Assim, o planejamento do uso da paisagem é fundamental para que se possam utilizar de maneira racional os recursos do presente e do futuro

(Fonte: SOUZA, A.F. ; CASTARO, L.A. Uma das apreensões de setores da sociedade nacional. Scientific American edição Julho de 2012)